terça-feira, 16 de outubro de 2007

PERJÚRIO REVOLUCIONÁRIO?

A Mentira

Mais depressa se apanha um mentiroso que um coxo

O dia de trabalho acabara e com ele a canseira de Siacid.

Com a perda da luz natural a cidade entra em reboliço, a azafama substitui a acalmia quando a cidade decide dar a vez ao ruído, à confusão, ao atropelo e à correria, esculpindo o cenário da hora de ponta.

Os automóveis movimentam-se em todos os sentidos e direcções.

Os comboios sinalizam a partida.

Os táxis não têm mãos a medir.

Os autocarros chegam e partem apressadamente, esvaziando as filas de espera.

Como habitualmente ao tomarmos o nosso lugar na fila de espera para o autocarro somos apanhados por um pequeno burburinho cuja causa logo se percebeu radicar no facto dum condutor ter estacionado o seu automóvel mesmo de frente para a paragem.

Neste local era proibido estacionar ou sequer parar, mas pior do que a contravenção foi o facto do condutor não ter desligado o motor, por isso o incomodativo cheiro dos gases do escape depressa começa a perturbar a suplícita fila de esperantes tendo um deles, quiçá o mais impaciente ou nervoso, começado a barafustar para com o infractor, berrando-lhe para que retirasse o carro dali.

Enquanto isso, um polícia, que se encontrava nas redondezas observa quietamente a cena, talvez pensando que a ira do impaciente logo se desvaneceria ou o autocarro entretanto chegaria ou ainda que o condutor atemorizado logo partiria, o que de facto veio a acontecer.

E, mal o infractor sai de cena, o impaciente, homem já de uma certa idade, desvia a fúria não contida para o polícia, questionando-o por não ter agido.

Entretanto chega o autocarro e com ele nova surpresa porquanto, enquanto nele entrámos, o velho, ainda colerizado, dirige-se-nos a palavra criticando a atitude do polícia – “Está a ver? Nada fazem? Não reagem? Que porcaria de regime? Onde está a autoridade? Ninguém tem mãos nisto?”

Hesitamos em responder, não que concordássemos com a atitude do polícia ou sequer com a reacção do impaciente, mas acabamos por retorquir – “O senhor vai desculpar-me, mas certamente terá vivido num tempo em que aquele condutor que se preparava para estacionar o carro num local indevido, ao verificar a presença do polícia, pura e simplesmente desistia da ideia respeitando a farda …”

Não ouvimos qualquer resposta.

Desligamos a atenção sintonizando o ruído do motor coligando-o com o som do vento que nesse fim de tarde se associam fustigando o entardecer, fazendo com que a despedida da luz do dia se faça com rancor, prenunciando a entrada em cena de Siacid.

Este aproveitando-se da sonolência dos irmãos, e com o cérebro a germinar pela conspiração decide iniciar a lexicologia revolucionária.

*

No sonho como no filme da imaginação o protagonista surge para iluminar o guião da felonia.

Letra a letra, palavra a palavra, linha a linha, eis a génese do texto que a história mais tarde irá registar como pergaminho mercenário: Alvor, Lusaka e Argel serão os capítulos que se seguirão e presumem materializar este retrato ao traduzir ipsis verbis os termos dum contrato-promessa repleto de imperfeições e de putativa licitude.

Assim começa a história de Siacid e com ela a história dum tempo para esquecer.

E, como todas as histórias também esta começa em Algures, um algures que nos obriga a recuar no tempo até cerca do ano 190 antes da era de Cristo.

Aqui chegados vemos a Lusitânia, então uma civilização em vias de ser esculpida pelo génio dum povo humilde, valente, sofredor e corajoso.

Uma seita de bravos que desafiando a imponência e a arrogância do valente invasor romano, e bafejados pela lotaria geográfica e ainda e quiçá especialmente liderados pela perícia dum chefe ímpar germinam o génio da invencibilidade, ludibriam o determinismo do império e garantem a independência da sua terra natal, durante anos e anos a fio.

Eis a história dum Povo, uma epopeia de génio, uma constância de árduas e prolongadas batalhas contra a potência colonial, alternando vitórias e derrotas, sem nunca desanimar ou desistir.

A cada vitória romana sucedia uma rebelião e assim sucessivamente até que, cerca do ano 150 aC, surge no seio deles um líder que respondia pelo nome de Viriato e sob o seu comando a Lusitânia não tardou a conquistar o epíteto de invencível levando Roma, sem alternativa política, a reconhecer o facto tornando-se seu aliado e concedendo a Viriato o título de amicus populi Romani.

E a acalmia durou anos a fio até que o ambicioso governador Servílio Cipião manda o acordo às urtigas e decide "vencer" Viriato.

E sem qualquer pingo de hesitação utiliza o mais ignóbil dos expedientes: a traição.

Desse mítico povo, secularmente celebrizado no génio desse líder traído, viria a descender a Pátria Portuguesa que o épico imortalizaria,

- Esta é a ditosa Pátria minha amada...

Esta foi LUSITÂNIA, derivada…

Desta o pastor, que no seu nome

Se vê que de homem forte os feitos teve;

Cuja fama ninguém virá que dome,

Pois a grande de Roma não se atreve…”[1]

Decidimos manter o pleonasmo porque a história de Viriato ir-se-ia repetir em termos e forma 2000 anos depois, altura em que três irrequietos irmãos resolvem brincar com a pólvora.



[1] “Os Lusíadas”, Luís de Camões.

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